sábado, 2 de junho de 2012

passou esta cerca, o gado é marcado.

 
Começo esse texto decidindo falar sobre um livro, sobre liberdade, sobre Liberdade e o que há por trás das duas cercas. A primeira, a do livro, me chamava de cima de meu criado, um inocente convite. Suas páginas denotavam uma caminhada longa que me assustou a princípio, o que juntando com o título  por entre nuvens condensadas acima de uma cerca branca tornava a resposta ao convite ainda preocupante, quase incerta. O que há por trás da cerca senhor Franzen? (pois não tomo o erro de confundir autor com narrador), o que me espera? O que você espera de mim também? Eu dentro da gaiola, presa, do lado de cá da cerca sem saber o que era Liberdade, e ela lá, além daquela capa, daquela cerca, daquelas nuvens. Um convite a uma tempestade, um convite à Liberdade, um convite à chuva que eu nunca recuso. 


O momento em que abri finalmente e aceitei o convite não estava de toda inocente dos fatos. Um servo de letras trouxe-me a notícia de quem me acompanharia na jornada. Não disse o meio, não disse as armas. Não disse mais nada. Agora sim, ilusoriamente segura por não saber de tudo, mas mais que quase nada, eu fui. Não sabia pra onde seria levada, mas tinha a certeza de quem me levaria. No fundo eu confiava no servo que segurava minha cadeira (ainda com quatro pernas e sustentada pela doce ilusão) e deixava que ele me levasse, aos poucos. Sem espera por nenhum milagre, eu queria liberdade, ou não? 


O campo não mostrava refúgio, a chuva de palavras se tornava forte e caía sobre minha face como tapas de verdade e epifania contida. Com a face ardendo caminhava além da cerca, e a cada obstáculo mostrava outra face. O enredo me marcava com seus dedos no rosto e corpo todo, e aos poucos sabia que mais cedo ou mais tarde atingiria em cheio certos pontos vitais. Além, estavam árvores com corpos pendurados dançantes em cadeiras que já não mais existem. Certo alívio encontrar os que já não falam: ainda não quero saber a verdade. Ainda não quero, liberdade. 


Em meu bolso uma carteira de cigarro, pois sim, precisava caminhar  com um lugar comum, uma zona de conforto e este seria o conforto qualquer. Carregaram-me às pressas e não tive tempo de usar um calçado confortável, minhas roupas eram as mesmas de ontem. Foi um convite tão esperado que não tive nem como pensar em usar meu melhor traje. Cervejas quentes e vinhos eram oferecidos pelo caminho, não recusava. Tinha sede sim, como qualquer mortal, mas minha fome era de outra coisa. 


Meu raro leitor, não vá querer que como outros  eu lhe conte esse árduo caminho que agora tenho liberdade, sim, liberdade de lhe narrar. Mas não quero, não posso. Ah, essa caixa de pandora, essa cerca branca, essa grama linda da família feliz ao lado, não se engane. Liberdade é mais que tudo isso, é muito mais que posso contar. Liberdade não cabe nesse texto sem nexo para onde fui e não soube mais como voltar. Me permite voltar? Preciso te contar umas coisas que notei no caminho. Desculpe que eu não tenho fotos, a realidade não me permite escancarar assim minha imaginação e minha noção de tudo tão torpe. Tão doloroso, enfim. 


Reparei que nessa jornada, liberdade com maiúscula ou minúscula não faz diferença. Ela é uma coisa só que buscamos, todos nós buscamos, mesmo sem saber. Afinal de contas, somos os animais na jaula. E a partir do momento em que nos sujeitamos a uma filosofia de vida que preze a liberdade também nos sujeitamos às suas conseqüências. E sim, uma das primeiras conseqüências é a morte, é a única prisão que não há como fugir. A liberdade nos faz cometer erros que nos tornam imorais perante à sociedade. A liberdade em Liberdade não termina quando começa a do outro. Não possui limites e talvez isso seja o que há de mais interessante em suas páginas. Mas quem se importa com convenções literárias que nos mostrem o caminho certo? Com personagens politicamente corretos? São esses personagens que nos fazem refletir a possibilidade e necessidade de se quebrar regras enquanto a vida não é mais previsível como antes. Ou será que um dia foi? 


No caminho árduo da Liberdade, ou liberdade, vida (!) há pessoas que se preocupam com a liberdade dos outros, mas não param para refletir por um momento sequer na sua, até que seja uma tarefa realmente necessária. Você encontrou isso pelo caminho Liberdade? Essas pessoas são as mais preocupantes. Por que o que eu faço da minha liberdade lhe diz respeito? (calma, vou responder). Encontrei pessoas que buscam por outros lados (oh! a imoralidade) e a encontram. Pessoas que encontram o caminho que acham que é o certo e acabam por serem trancafiadas em outras prisões, menores prisões. Aqueles que vivem em sentinela. Pra qualquer tipo de prisão existe uma única liberdade. 


A liberdade nunca é alcançada. O raro leitor se engana quando pensa que o final é feliz (ao menos esta foi a minha impressão). Quando é alcançada, e se é alcançada é por uma série de erros e pedras no caminho (o óbvio do caminho que não é fácil). Ela deve ser entendida e merecida, o que no final chega a ser contraditório, pois que as duas liberdades almejadas no enredo se prendem uma a outra. Duas almas que de alguma maneira se sentem livres estando presas. Duas liberdades que se prendem e se completam. O que não é raro. 


Não pretendi aqui fazer propaganda de Liberdade, pois não vendo o que não tenho e empresto menos ainda. Somente salientar a importância de aceitar convites desse tipo, que nos marcam independentemente do final feliz ou do que há do outro lado. Que não nos mostram convites convencionais de um mundo perfeito, de pessoas perfeitas ou em busca de perfeição. O convite marcou, e sua trajetória também. O convite possui um enredo que cativa ao mesmo tempo em que nos deixa absortos nas mesmas questões que preocupam seus personagens. O mundo necessita desse tipo de literatura, que nos trás problemas e não soluções. Necessitamos deixar de lado convites para lugares felizes, palestras de motivação e alienações diversas para encararmos o banquete das coisas que não nos prometem nada além de cicatrizes. Não espere de convites assim um carinho, um afago (só aceite o beijo se vier seguido de escarro). A literatura não é apaziguadora e Franzen sabe disso. 


Um livro que marca.

Não.

 
Não precisa provar (o crime não é seu). Não precisa lutar (a guerra também não é sua). Abstenha-se. Não lute com todas as forças contra uma mentira. Você vai precisar delas (suas forças) em breve e não quero que se canse com o que não existe. Não tente me convencer de todas as formas tortas e incompletas, minúsculas formas – maiúsculas vontades, não convencem. Pois não há o que provar. Não há o que convencer. Esqueça. A contradição em não querer mais insistir, insistindo, e em não ser, sendo, não corresponde às minhas cimentadas incertezas. Não corresponde ao meu castelo de vagos interesses também.

Na surdina cantam os humanos (porque a metáfora animal eu já não mais posso). O que me fez pensar (pasmem) e refletir seja lá qual for a resposta: qual é a onomatopéia dos humanos?

Não quero mais saber.

Quero saber o que foi cantado aquele dia em que não estava, em alto e bom som. Ou o que foi gesticulado através dos vidros e garrafas em minha memória. Sim, porque de qualquer maneira eu estava lá. Você me faz presente e não percebe. Eu gosto disso. Nas libras que eu pouco entendo, no prensado braile que não me atrevo, ou no que as palavras não dizem (tenho uma alma que dança onde as palavras não têm vez).

Simplesmente seja e não se importe comigo. E só o que eu peço.