sábado, 27 de outubro de 2012

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Meu Deus, se alguém me perguntasse o que há de mais patético no ser humano, daria a seguinte resposta fulminante: — “A nudez”. Para mim, não há nudez intranscendente. Explicarei, mais adiante, por que um vago decote pode comprometer ao infinito. Mas o que me importa, de momento, é contar o grande espanto de minha infância.
Recentemente, no Correio da Manhã, o Paulo Francis falava na “demência insuportável” de Dostoievski. De acordo, e daí? Outro “demente insuportável”, e de rasgar dinheiro, seria Tolstoi. E ainda outro, que também podia ser amarrado num pé de mesa, o Shakespeare de Ricardo III. Só o Pedro Calmon não é demente. (Estou divagando outra vez, e desculpem.) Eis o que eu queria dizer: — a palavra “demência” levou-me a uma loucura antiga, nada literária e, até, analfabeta. Vejamos. Já contei umas dez vezes que minha família morava na rua Alegre, Aldeia Campista, ao lado de uma farmácia. Na esquina, à esquerda da minha casa, residia um parente do marechal Hermes da Fonseca. E, ao lado, havia uma cabeça-de-porco. Morava aí, com a mãe, por sinal lavadeira, uma moça, dos seus 25, trinta anos. A velha era portuguesa e a filha, não sei.
Era a doida da rua, do bairro. Não gritava, não agredia nem falava. Ficava no quarto, dia e noite; e eu ouvia dizer que “tomava banho de bacia”, com a mãe ensaboando, esfregando e berrando: “Fica quieta, fica quieta!”. Dizia-se também que a demente tinha horror de banho (também não sei).
Em torno dessa loucura, fora montado todo um folclore; e, de vez em quando, vinha uma comadre e acrescentava mais uma fantasia. Certa vez, ouvi uma conversa de vizinhas. Uma das mexeriqueiras contou que a louca, nas noites quentes (ou frias, sei lá), tirava a roupa, tudo. E ia assim, nua, até de manhã. De manhã, a portuguesa acordava e metia-lhe o chinelo. 
Eu ouvi a história, de olho grande. Por muitos dias e muitas noites aquilo não me saiu da cabeça. Imaginava a nudez insone, nudez delirante, rodando pelo quarto.
Agora vem o tal grande espanto da minha infância. Eu já fizera sete anos, e estava na escola pública. Alguns alunos levavam merendas santuárias. Lembro-me de um deles comendo pão com ovo. Pão com ovo! E a gema pendia-lhe do beiço, como uma baba amarela. Aquilo me apunhalava de inveja. Mas voltando à filha da lavadeira: — eu sentia pela demente um certo encanto apavorado. Em casa, as tias avisavam: — “Não vai lá! Não vai lá!”. Mas eu escapulia e, com pouco mais, estava brincando com os meninos da casa de cômodos. Até que tomei coragem.
Tomei coragem, passei a mão no trinco e empurrei a porta. Passei lá um segundo fulminante. Mas vi. A louca estava no fundo do quarto, encostada à parede — e nua. Completamente nua. Essa imagem de nudez acuada está, ainda agora, neste momento, diante de mim. Não esperei mais. Corri. Entrei em casa tão branco que alguém perguntou: — “O que é que você tem, menino?”. Disse, se é que disse: — “Nada, não”. Meti-me na cama; debaixo do lençol, tiritava de vergonha, pena, medo e, também, nojo. De repente, o mundo se enchia de nus. Cada qual tinha a sua nudez obrigatória. As donas da rua, se tirassem a roupa toda, estariam nuas como a filha da lavadeira.
Isso aconteceu em 1918, por aí. Um domingo, trinta e tantos anos depois, estou no portão. E ouço uma vizinha perguntar a outra vizinha, de janela a janela:
— Sabe quem morreu? A Marilyn Monroe.
— Morreu?
— O rádio está dando.
— Desastre?
— Suicídio.
Ora, quem se mata tem, automaticamente, o meu amor. E, além disso, prefiro as neuróticas (mais tarde direi por quê). Saí do portão, fui comprar cigarros e só pensava na suicida. Na sua adolescência, Marilyn posou nua para uma folhinha. E esse impudor mercenário foi, ao mesmo tempo, de uma fulminante eficácia promocional. Do dia para a noite, ela se tornou célebre: — célebre e nua, célebre porque se despira. Daí para Hollywood, a distância seria um milímetro.
A folhinha correu mundo. Foi desejada em todos os idiomas. Nos botecos de Bombaim, ou do Cairo, ou de Cingapura, os paus-d’água sonhavam com o frescor implacável de sua nudez. Ao mesmo tempo, ela se tornava uma grande atriz. Trabalhou com sir Laurence Olivier. Não sei se antes ou depois, casou-se com Arthur Miller. Pouco importava o marido, o homem; o que a fascinou foi o grande dramaturgo (falso grande dramaturgo e pulha da pior espécie).
Tudo espantosamente inútil. Se ela fosse nomeada rainha da Inglaterra, ou promovida a madame Curie, ou carregada num andor — daria no mesmo. Nenhuma coroa, nenhuma estrela, nenhum manto — nada a salvaria de sua própria nudez.
Até que, num sábado, ou num domingo, ela se matou. A besta do Arthur Miller não entendeu nada. Fez uma peça infame. De seu texto, salva-se apenas uma única e escassa passagem. É quando Marilyn Monroe, de quatro, berra: — “Eu queria ser maravilhosa! Eu queria ser maravilhosa!”. Para morrer, Marilyn despiu-se como na folhinha. E morreu nua. Morreu folhinha.
Quero que vocês me entendam. São dois nus justapostos: — a demente de Aldeia Campista e a estrela de Hollywood. Essa relação é de uma nitidez apavorante, sem nenhum mistério. Não importa que uma seja doida e a outra não. Ou por outra: — que uma seja doida e a outra também. Na minha memória, uma e outra estão unidas como se fossem (Deus me livre) duas lésbicas. E há uma terceira figura que acho igualmente desesperadora.
A do biquíni. Sou um obsessivo e houve alguém, se não me engano, o Cláudio Mello e Sousa, que me chamou de “flor de obsessão”. Exato, exato, e graças a Deus. O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões. Pois o biquíni é o meu cotidiano espanto. Todos os dias, o meu táxi vai do Forte ao Leme, seguindo a mesma orla de umbigos. Não sei qual das três é a mais humilhada: — a louca da rua Alegre, Marilyn Monroe ou a moça do biquíni. Diria que a atriz merece a desculpa apiedada do impudor mercenário. Posso até insinuar que foi a ordem capitalista que a despiu. Mas o biquíni é a folhinha de graça, a folhinha não gratificada, a folhinha sem cachê.
Sei que, falando assim, lembro, talvez, o pastor de Chuva, antes do pecado. Não faz mal. Vivo a dizer que considero o ridículo uma das minhas dimensões mais válidas. O medo do ridículo gera as piores doenças psicológicas. Mas falei, falei, e não estava dizendo o essencial. Ouçam: — Marilyn Monroe morreu porque se despiu sem amor. E aí está a palavra: — amor, amor. Foi o remorso, foi a humilhação da nudez sem amor. Só o ser amado tem o direito de olhar um simples decote. É apenas um decote, mas só o ser amado pode olhar a linha nítida, tão nítida, que separa os seios.

Nelson Rodrigues em A Menina Sem Estrelas

... II


Meus dedos acordaram ácidos de palavras velhas e sujas que putrefaram ao calor do sol de uma felicidade passageira, verdadeira, mas que se foi. Intensa, queimava cada vocábulo não dito e até mesmo os velhos e repetidos não foram salvos de sua intensidade. Meus últimos dias se dividiram entre o silêncio e o apodrecimento das frases. Se dividiu entre a Carniça de Baudelaire e Mais Luz de Antero de Quental, e eu te digo, o caminho do meio não é um dos mais confortáveis. Entre a ânsia de dizer e saber que não é necessário só cabe a angústia. E mais nada.
Quando me pego entre essas reflexões me lembro daquela música que me mostrou quando já não havia mais palavras e quando temperar com musicalidade nossas tardes vazias e silenciosas parecia uma das últimas soluções. Aquele que fala do silêncio e das palavras que machucam. Eu sei. Sempre soube.
Mas agora preciso dos meus dedos podres, e pra ser irônica, do que está em minhas mãos. Ficaram um tempo paradas fazendo coisas triviais, prazerosas, se ressecando com o giz ou amarelando com o cigarro, sempre nos mesmos dedos. Estratégicos. Se lembra quando eu odiava o modo como soltava a fumaça e escorava o cigarro nos dedos, assim? Lembrei também. E depois disso não houve dúvidas de que odiamos algumas coisas que existem em nós mesmos. 
Você nunca soube do que meus dedos um dia seriam capazes de fazer, nem eu mesma sabia e me surpreendia com coisas novas, palavras e combinações diferentes com todos os dez bailarinos dançando coreografias caligráficas de quem aprendeu a lição mas adora quebrar regras e botar sentimento onde não tem. Desculpe se não te deixo respirar com minhas sentenças longas e sem vírgulas, é que tenho a sensação de que no papel possuo mais fôlego do que o normal, meu pulmão não está lá essas coisas, mergulho nas tangentes e faço o que posso do modo como não devo e só o tempo corrigirá.
Tudo acaba sendo corrigido de alguma forma, não? O caminho que eu passava de bicicleta feliz e não sabendo nada da vida está sendo loteado com casas, será habitado. O caminho que cortava já não é mais caminho cortado, agora é rua com cep e tudo mais. A cidade muda e tudo muda e nada mais é pacato como antigamente. Nem mesmo as pessoas. Nem mesmo eu tão calma. Nem mesmo meus dedos que agora estão magros, sujos, cheios de ferida. O estranho é que sua presença é pacata e inspira uma tranqüilidade que jamais imaginaria que pudesse vir de você, tão agressivo e bipolar.
Minha agressividade agora se concentra nos dedos, lutando para viver em luz lavando palavras sujas, jogando as podres para todos os lados, e tentando se regenerar de tanta merda escrita e de tantos apertos de mão trocados em vão.